segunda-feira, 9 de julho de 2007

Besteiras: uma crônica da Adriana Falcão

Para quem não conhece, a Adriana Falcão é uma das mais inspiradas cronistas brasileiras da atualidade. Tem um jeito com as palavras de dar inveja!; ou despertar admiração, o que é o meu caso... Como sou fã de carteirinha, resolvi recuperar, aqui no Mean Divas, uma crônica publicada por ela em 2003. Gente, como eu me identifiquei com esse texto!
Em tempo: a ilustração é de Mariana Massarani.

Enjoy!

Besteiras

Adriana Falcão

Tirar noves fora dos números das placas dos carros.

Dedilhar no ar o ritmo das sílabas das palavras.

Pisar uma vez em cada quadradinho da calçada.

Ir pelo branco.

Ou pelo preto.

direito no branco, esquerdo no preto. Agora ao contrário. No ritmo. Um, dois, um, dois, um, dois, e se eu parar de respirar de repente? Pronto. Parei. Pra que eu fui pensar nisso? Bem feito. Eu estou cansada de saber que toda vez que penso em parar de respirar eu paro mesmo e não respiro mais. Respiro, sim. Senão eu teria morrido. Agora, por exemplo, eu estou respirando perfeitamente. Não estou? Não estou. Mas, se pensar em outra coisa, eu respiro.

Qualquer besteira serve.

Vamos .

Uma besteira.

Inventar uma vida pras pessoas que passam.

Esse é casado. Mas nunca esqueceu uma antiga namorada. Médico? Veterinário.

Aquela está loucamente apaixonada, trabalha numa locadora, tão sonhadora, coitada. Pronto. Agora eu vou ficar com pena de uma mulher que nem conheço.

Melhor pensar em outra coisa.

Outra coisa, outra coisa, outra coisa, qualquer uma.

Dunga, Zangado, Soneca, Atchim, Mestre, Dengoso, e agora? Alguém sabe recitar os sete anões de primeira, sem faltar nenhum, pelo amor de Deus?

Calma. É uma situação delicada, mas também não é caso de vida ou morte. Eu vou lembrar.

Será que todo mundo sempre esquece o mesmo anão?

Será que é psicológico?

Talvez exista alguma relação entre o anão que a pessoa esquece e a personalidade dela. Talvez alguém tenha feito algum estudo sobre isso.

É claro que ninguém ia pensar nessa besteira.

Outra.

Se o próximo carro que passar for verde, ele gosta de mim.

Foi branco.

Não valeu.

Eu esqueci de avisar pro mundo.

Atenção, mundo, valendo a partir de agora. Se o próximo carro que passar for verde...

Vermelho. LCC 1846.

Oito e um, nove, mais quatro, treze, mais seis, dezenove, noves fora, um.

LCC? Luís. Carlos. Campelo. Não conheço. Era muito melhor quando as placas dos carros tinham duas letras. Pelo menos dava pra formar casal. Eu adorava quando vinha AL. Nunca vinha.

vem um verde.

Dobrou a esquina.

Será que isso é algum aviso?

Besteira.

Outra.

Será que o verde que eu vejo é igual ao que os outros vêem? Talvez o que pra mim seja verde para os outros seja azul. Isso faz alguma diferença para mim? Não. Ainda bem. Menos um problema na minha vida. Já posso pensar em outra coisa.

Outra coisa, outra coisa, outra coisa, e se eu esquecer de engolir? Como é que se engole mesmo? Esqueci. Bem feito de novo. Quem mandou ficar pensando nisso? Agora vou ficar sem respirar e sem engolir até chegar ao hospital.

Besteira.

Outra.

Se o sinal abrir enquanto eu conto até dez, eu vou ser feliz a vida inteira.

Feliz!

Era Feliz o anão que faltava.

Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, o sinal não abriu.

Será que isso é algum aviso?

Besteira.

Veja Rio, 9 de abril de 2003


P.S. - Quem quiser conhecer um pouco melhor a Adriana Falcão, pode dar uma espiada no site Releituras, clicando aqui. Há lá mais dois textos da moça.

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5 comentários:

Berná disse...

Olha o TOC aí, geeeeeeeeete!!!
rsrsrsrsrs...

Unknown disse...

Ih, mas sou bem eu isso...
Essa de cores então, me vem na cabeça todo santo dia, essa de pisar só no branco ou no preto. Hú... acho que sou maluca! ;)

Flower Nakamura, ME disse...

Vc acha que eu citei o texto por quê???? Identificação absoluta, sister! :)

DIVA Sen disse...

Same here!
(ainda temos que elaborar o post sobre o milho verde...)

Unknown disse...

Mas precisamos de uma foto do milho comido... ;)