Não fui uma criança de muitos desejos. Claro, como todo mundo, de vez em quando eu queria ganhar alguma coisa especial – geralmente um conjunto de panelinhas para as muitas brincadeiras de cozinhadinho no quintal de casa (acho que esgotei, na infância, minha vocação para a culinária…), mas essas vontades eram quase sempre satisfeitas dentro de algum tempo.
Eu me lembro, porém, de ter, muito cedo, um imenso desejo de aprender a tocar violão. Como sou sete anos mais nova do que minha irmã mais próxima, desde muito pequena eu assisitia às aulas de violão que ela tinha lá em casa. E morria de vontade de aprender também.
O maior obstáculo, evidentemente, era o meu tamanho. Precisava crescer o suficiente para “abraçar” o violão com a mão direita. O braço esquerdo precisava ser longo o bastante para alcançar a extremidade do braço do instrumento e montar os acordes. Tive, portanto, que esperar. E, na minha perspectiva infantil, essa foi uma espera longa e interminável.
Um dia, porém, chegou a minha vez de sentar no sofá da sala de televisão, com o violão no colo, e receber as primeiras instruções do mestre Maurício de Oliveira. Com infinita paciência ele me ajudou a juntar os 3 dedinhos da mão direita e me ensinou a tocar o primeiro tipo de acompanhamento que se aprende: zum-pa-pa-zum-pa-pa-zum… uma valsinha. Passei algum tempo treinando, com a mão direita, a alternar entre o toque do polegar, na segunda corda de cima, e dos três dedos juntos, nas cordas de baixo.
Quando demonstrei algum controle sobre o ritmo, o professor passou à lição mais difícil: os dois acordes que “comporiam” a primeira música a ser tocada. Com um enorme esforço para os meus dedos pequenos, apertei as cordas do lado esquerdo para formar o Lá maior e o Mi maior. Doía, mas isso não era o suficiente para conter a minha vontade de aprender. Demorou um pouco, mas a persistência trouxe consigo a devida recompensa: dentro de algum tempo eu conseguia trocar de um acorde para o outro na mão esquerda, enquanto, com a direita, mantinha o ritmo da valsinha: zum-pa-pa-zum-pa-pa-zum…
Por fim, o último elemento precisava ser integrado: a voz. Afinadinha, comecei a cantar: Serenô, eu caio, eu caio. Serenô, deixai cair. Serenô da madrugada não deixou meu bem dormir. E assim, ao final de uma aula, comecei a tocar violão. A alegria foi indescritível. De repente eu também comecei a fazer algo que minhas irmãs maiores também faziam (muito melhor do que eu, mas isso não importava). Começamos, em família, a tocar juntas algumas músicas mais simples. A cantoria era animada. Meu pai sempre entrava fazendo a segunda voz.
As aulas continuaram. E a disciplina aprendida com o violão é algo que até hoje me acompanha. Quando se tem 6 ou 7 anos e se aprende a passar algumas horas treinando escalas para garantir que os dedos tenham a agilidade necessária para produzir os sons, fica bem mais fácil lidar com outras muitas circunstâncias da vida que exigem dedicação, paciência e concentração.
Aos poucos, Maurício começou a me introduzir ao violão clássico. Ainda antes de aprender a ler notação musical, eu já tinha um caderno pautado em que ele desenhava os acordes necessários para que eu conquistasse o meu segundo grande feito musical: solar o “Romance de Amor”. Quando isso aconteceu, mais uma emoção imensa, porque, na companhia da minha irmã, era possível tocar uma música belíssima em duas vozes.
As lembranças de Maurício são muitas, todas felizes ou peculiares. Lembro, por exemplo, de que ele sempre se vestia de branco. Anos mais tarde, lendo os famosos versos de Drummond – Ele ia de branco pela rua cinzenta – pensei imediatamente: como Maurício. Era uma tolice em relação ao poema, claro, mas a roupa branca era um traço do mestre.
Lembro das muitas vezes em que, diante de uma nova partitura e ainda meio insegura na leitura da duração das pausas e notas, eu dava um jeito de fazer com que ele tocasse primeiro para eu ouvir. Como sempre tive um ouvido muito bom para música, quando chegava a minha vez, eu tentava reproduzir a duração correta, a partir do que havia ouvido. Ele sabia que era isso que eu estava fazendo e comentava: é para você ler a partitura, não para tocar de ouvido!
Lembro das tardes de sábado, quando um grupo dos alunos de Maurício se reunia para ensaiar. Éramos umas sete pessoas, de idades e habilidades com o violão muito variadas. Todos nós, porém, tínhamos a responsabilidade de solar uma música. A minha era a Serenata, de Schubert. É difícil descrever a alegria e o prazer de ouvir, saindo dos meus dedos e com o acompanhamento de todos os outros violões, uma música tão bela.
As lembranças são muitas. Provavelmente muito semelhantes às de tantos outros alunos que Maurício ensinou a tocar violão. Como eles, desde ontem à tarde, perdi um mestre.
Hoje, os violões capixabas estão em silêncio. Mas a música de Maurício vai permanecer viva nos muitos violonistas que ele formou.
Fica aqui registrado o meu adeus ao mestre, com carinho.
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