domingo, 23 de novembro de 2008

Pobre poeta...

Leio no G1 que, mais uma vez, foi danificada a estátua de Carlos Drummond de Andrade, na orla carioca. Inevitável lembrar do poema "O elefante", em que o próprio Drummond reafirma sua crença na humanidade, apesar de todos os sinais negativos.

Não sou como ele. Não acredito que haja esperança para um povo de vândalos incultos. Tá, não dá para generalizar. Mas o que dizer quando se constata que, só este ano, já é a sexta vez que quebram os óculos da estátua?

Qual é o perfil de quem faz uma coisa dessas? Será que já leu um livro na vida? Um poema sequer? Será que já ouviu falar em Drummond, sabe da sua importância para a cultura brasileira, ou acha que a estátua é só um velhinho sentado em um banco no Posto 6?

Infelizmente, vivemos em um país em que cultura, conhecimento, leitura, são vistos como coisas inúteis. Mais valem os concurso de "bunda". Mais sucesso fazem as popozudas do funk.

Fica aqui o registro da minha revolta e da minha tristeza. Deixo também o belíssimo poema, que é longo, mas vale ser lido até o final. Porque, por mais ignorantes que sejam as pessoas, elas jamais conseguirão destruir a obra de Drummond.

Drummond_oculos

O elefante

Fabrico um elefante

de meus poucos recursos.

Um tanto de madeira

tirado a velhos móveis

talvez lhe dê apoio.

E o encho de algodão,

de paina, de doçura.

A cola vai fixar

suas orelhas pensas.

A tromba se enovela,

é a parte mais feliz

de sua arquitetura.

Mas há também as presas,

dessa matéria pura

que não sei figurar.

Tão alva essa riqueza

a espojar-se nos circos

sem perda ou corrupção.

E há por fim os olhos,

onde se deposita

a parte do elefante

mais fluida e permanente,

alheia a toda fraude.

Eis meu pobre elefante

pronto para sair

à procura de amigos

num mundo enfastiado

que já não crê nos bichos

e duvida das coisas.

Ei-lo, massa imponente

e frágil, que se abana

e move lentamente

a pele costurada

onde há flores de pano

e nuvens, alusões

a um mundo mais poético

onde o amor reagrupa

as formas naturais.

Vai o meu elefante

pela rua povoada,

mas não o querem ver

nem mesmo para rir

da cauda que ameaça

deixá-lo sozinho.

É todo graça, embora

as pernas não ajudem

e seu leve empurrão.

Mostra com elegância

sua mínima vida,

e não há na cidade

alma que se disponha

a recolher em si

desse corpo sensível

a fugitiva imagem,

o passo desastrado

mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres

e situações patéticas,

de encontros ao luar

no mais profundo oceano,

sob a raiz das conchas,

de luzes que não cegam

e brilham através

dos troncos mais espessos,

esse passo que vai

sem esmagar as plantas

no campo de batalha,

à procura de sítios,

segredos, episódios

não contados em livro,

de que apenas o vento,

as folhas, a formiga

reconhecem o talhe,

mas que os homens ignoram,

pois só ousam mostrar-se

sob a paz das cortinas

à pálpebra cerrada.

E já tarde da noite

volta meu elefante,

mas volta fatigado,

as patas vacilantes

se desmancham no pó.

Ele não encontrou

o de que carecia,

o de que carecemos,

eu e meu elefante,

em que amo disfarçar-me.

Exausto de pesquisa,

caiu-lhe o vasto engenho

como simples papel.

A cola se dissolve

e todo seu conteúdo

de perdão, de carícia,

de pluma, de algodão

jorra sobre o tapete,

qual mito desmontado.

Amanhã recomeço.

Sphere: Related Content

Nenhum comentário: